domingo, 22 de abril de 2012

Matéria Sobre Crossdressing Publicada no Correio Brasiliense 23/09/2001

Correio Brasiliense, 23 de novembro de 2001

Eles dividem sonhos, a rotina e também a lingerie. É assim o casamento de mulheres que escolheram homens que, apesar de se definirem como heterossexuais, adoram usar salto alto e vestido

Texto de Dalila Góes
Produção de Rosane Torres
Da equipe do Correio Brasiliense

"Se o marido ama verdadeiramente sua mulher, ele veste suas roupas." Assim, com a simplicidade de quem fala sobre a classificação da Seleção Brasileira, Verônica Sun define seu estilo de vida. Ela é ele, 37 anos. Ótimo pai, ótimo marido e cozinheiro. De segunda a sexta-feira, das 8h às 18h30, é o chefe de 19 pessoas em uma multinacional em São Paulo. Executivo, é obcecado pela aparência. A cada 15 dias apara o cabelo preto bem curto, usa máquina dois. Não liga para uns fios brancos que surgem na lateral da cabeça. Sortudo, não tem entradas que indiquem calvície. Nas idas ao salão, aproveita para dar um trato nas unhas, cobertas com esmalte transparente à base de cálcio. A barba é feita todas as manhãs depois da aula de ginástica, às 6h30.

Sun é magro, mas tem tendência a ganhar peso. Esse é seu maior pesadelo. São 82kg em 1,81m. Na sua casa não entram achocolatados nem refrigerantes. As crianças — duas meninas de 9 e 12 anos — acompanham a dieta militar do pai sem reclamar. Se engordar um grama, Verônica Sun não entra nas roupas de Maria, sua mulher. ‘‘O guarda-roupa dela é 44, mas há peças 42, principalmente os shorts e as saias’’, preocupa-se. Com Maria ele divide, além das roupas, a maquiagem, a meia-calça, os cosméticos e as calcinhas, que esconde com todo o cuidado por trás da fachada do executivo. ‘‘Sou heterossexual. Casado. Me visto de mulher, mas não desmunheco nem tenho voz de bicha’’, afirma, seco.

Verônica — que prefere não revelar o ‘‘nome de macho’’ — é um crossdresser, ou CD, nome genérico de uma liga que reúne homens que cultivam o hábito de se vestir de mulher. Entre eles, os populares travestis e drag queens, mas também muitos heterossexuais. Como em um clube de amigas, os crossdressers — ‘‘travestidos’’, tradução ao pé da letra do inglês — se reúnem para tomar chá e discutir onde comprar vestidos extra-grandes, sapatos tamanho 44 e trocar impressões sobre o comportamento de suas esposas.

Maria, mulher de Verônica, não se incomoda mais com os hábitos curiosos do marido. Encontrá-lo de robe depois de um dia de trabalho significa encontrá-lo feliz. ‘‘Se está com roupa de homem, está chateado. É quase como uma TPM’’, graceja a mulher, que preferiu o contato via e-mail. Se a aparência de Verônica não incomoda Maria, o mesmo não se pode afirmar das duas filhas do casal. Em uma briga com a mãe, a mais velha, de 12 anos, chegou a afirmar que a infelicidade da família era culpa do pai, que, segundo ela, é homossexual.

‘‘Os jovens são engraçados. Se dizem muitos modernos, mas na verdade são conservadores. Quando os pais os superam no aspecto da estranheza, ficam introvertidos e agressivos. Entendo minha filha, mas é só uma fase’’, desdenha Verônica, que garante ser compreensivo com suas crianças. Por causa de seu estilo de vida, ele acredita que tem que ser melhor do que outros pais. Sobre a filha mais nova, garante que são grandes amigos. E ponto final.

No ‘‘encontro das meninas’’, quase todas as sextas ou sábados, toma-se cerveja, come-se amendoim, discute-se futebol. Como supõe-se ser um encontro masculino. As mulheres são bem-vindas, desde que sejam da família dos maridos. Como o segredo é a alma do negócio, ninguém vai para a rua vestido de mulher. Um espaço na casa é reservado para os rapazes trocarem de roupas. Das sacolas saem vestidos, perucas, gel, unhas postiças. ‘‘Ajudamos umas às outras a fazer a maquiagem’’, explica Macy Bella, 24 anos, crossdresser desde os 12. Nas reuniões, quem quiser fala grosso, e quem quiser fala fino. ‘‘Como não é clube exclusivo de heterossexuais, muito gays que ainda não saíram do armário (se assumiram) desmunhecam. Mas tudo com muito respeito’’, ri Bella.

Teorizar sobre relacionamentos como o de Verônica e Maria é mesmo difícil. A psicanalista Anna Elisa Güntert, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, trabalhou com avaliação psicológica de transexuais e sabe que não dá para generalizar. ‘‘As relações são muito únicas’’, pondera. ‘‘O que se pode concluir desses amores é que houve um conluio de fantasias, que até pode durar a vida toda.’’

No Brasil, a sede dos crossdressers fica em São Paulo, o Brazilian Crossdresser Club (BCC). Mas o ponto de encontro, e de comunicação, é mesmo a Internet. No site oficial dos brasileiros, o www.
bccclub.com.br, no ar desde 1997, a primeira impressão é de um clube familiar. Há dicas de filmes — nenhum deles de conteúdo pornográfico —, cantores, músicas e compras. No histórico, eles/elas informam: ‘‘Existimos pelo prazer de ser mulher’’. E rogam a Deus: ‘‘Que nos ajude e nos ilumine para sempre’’.

O crossdresser Paula Andrews, 48 anos e no segundo casamento, é um dos porta-vozes da turma. Ele garante que o clube é uma instituição séria e que não são permitidas pessoas com intuitos sexuais ou que queiram promover discórdia, desentendimento, preconceito, brigas. ‘‘E outras atitudes desagradáveis, como falsos crossdressers, transexuais ou travestis’’, recrimina. Não é preciso pagar para se filiar, a exigência-mor é o sigilo e a discrição.

Na diretoria surgem nomes como Deborah Cristina, Lorena Sioux, Paola Gabrielle e Suzy Kelly, todos compostos, pomposos, ou, como preferem, naturalmente femininos. É mais uma exigência do BCC. A última estatística do clube, em janeiro do ano passado, contabilizou 203 associados em todo o país, todos maiores de 18 anos. Noventa e seis eram solteiros, 91 casados, 16 separados e um viúvo. A faixa etária predominante é entre 21 e 30 anos, com 38%. No Distrito Federal, existem seis associados. Nenhum quis falar à reportagem. Nos Estados Unidos, país que originou o movimento, são mais de oito milhões e meio de homens que assumem que gostam de se vestir de mulher. Em segundo lugar, estão Alemanha e Londres, com cinco milhões cada um, segundo dados do International Crösse Club, de Munique.

QUEM É QUEM?

Homossexuais

Homens ou mulheres que têm atração por pessoas do mesmo sexo. Podem, ou não, assumir características femininas ou masculinas.

Crossdressers

Homens que têm prazer em se vestir de mulher. Podem ou não ser homossexuais.

Travestis

Homens que têm características femininas adquiridas por meio de hormônios ou plásticas. Agem e se vestem como uma mulher.

Transexuais

Têm as mesmas características de um travesti, mas preferem mudar de sexo por meio de uma cirurgia de conversão sexual.

Drag queens

Homens que fazem performances artísticas vestindo-se com roupas de mulher, de forma exagerada. Podem ou não ser homossexuais.

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